A palavra “intelectual” foi utilizada pela primeira vez na França logo após a publicação da “Carta Aberta de Émile Zola a Felix Faure, então Presidente da República, no jornal L’Aurore Littéraire de 13 de janeiro de 1898. Nesta carta Zola protestava em nome dos valores superiores da verdade e da justiça contra os juízo nulo a que foi submetido Dreyfus. Nas semanas seguintes a carta de Zola, o periódico continuou incluindo em algumas edições, protestos feitos por centenas de nomes conhecidos do público. Eram, antes de tudo, nomes de proeminentes professores universitários de diversas áreas, cada um portando uma sequência de títulos acadêmicos e prêmios honoríficos. Entre os acadêmicos havia também um bom número de artistas, arquitetos, advogados, cirurgiões, escritores e músicos. Já no número de 23 de janeiro, o editor Georges Clemenceau, anunciava que havia nascido uma nova e poderosa força política. A união desse grupo em torno de uma ideia política era sua ata de nascimento. Assim, deu a essa nova força o nome de “intelectuais”: “Não é este um sinal, todos aqueles intelectuais que vêm de todos os cantos da terra e se unem em torno de uma idéia?”.
Clemennceau se referia aos especialistas de alta roda, homens iluminados em suas áreas de conhecimento, que, ao consideram seus direitos e deveres, uniram-se pela defesa de valores importantes, uma vez que, não se sentiam protegidos. Na verdade esses intelectuais sentiam-se ameaçados pelas ações autoritárias do Estado. Ao dar esse passo, os signatários das cartas davam expressão as suas suposições tácitas.
Em primeiro lugar, apesar das diferentes atividades e profissões, havia um importante atributo compartilhado entre os acadêmicos, artistas, advogados, escritores e músicos. Graças ao saber excepcional que dispunham em suas respectivas áreas, ante o parco conhecimento da gente comum, todos tinham um relacionamento particularmente próximo aos valores fundamentais que sustentavam e determinavam a qualidade de vida da sociedade como um todo. Esses intelectuais eram considerados “os guardiões da verdade e da objetividade”, condição que os elevava acima dos interesses puramente partidários. Como principais praticantes de suas especialidades e portadores de excepcional confiança e estima pública eram também especialistas nos valores culturais que transcendiam qualquer isolamento de propriedade social ou qualquer função específica. Tinham, portanto, o direito de usar a enorme consideração pública, para interferir com suas posições sobre as questões de interesse coletivo. Tinham o direito de falar com autoridade sobre questões que não eram diretamente relacionadas com suas áreas. Eles eram a “alta inteligência” denominada por Regis Dubray: “coletividade de pessoas com base social que tornam notórias suas opiniões individuais sobre assuntos públicos, independente do processo de regulação civil nos quais os cidadãos comuns são circunscritos”. Coletivamente têm um poder que, embora proveniente de diferentes fontes, podem ser configurados para além de (e, se necessário, contra) os políticos eleitos.
Em segundo lugar, ao tomarem posição de questionamento em relação às políticas públicas, particularmente questionavam os significados éticos. Tornavam-se porta vozes do povo sempre que os políticos, gestores e profissionais do setor público falhavam nas suas pastas. Como grupo, os intelectuais assumiram a responsabilidade de acompanhar e fiscalizar as ações daqueles que foram designados como guardiões dos valores públicos, assim como, sentiam-se na obrigação de intervir quando as ações públicas encontravam-se abaixo da norma. Ao fazê-lo, os intelectuais transcendiam seus interesses de grupo e de ofício. Consideravam-se uma categoria “não egoísta” dentro da sociedade e, por essa razão, uma categoria imparcial, objetiva em suas opiniões e autorizada a falar em nome da sociedade como um todo. No tocante a formulação Lucien Herr, só os intelectuais são pessoas "que sabem como colocar o ideal da lei e da justiça, acima dos interesses pessoais e de grupo”.
Em outras palavras, “intelectuais” são aqueles que têm (ou alegam ter) tanto a capacidade como o dever de atuar com a “consciência coletiva” da nação, ultrapassando assim, as diferenças profissionais, tanto nas suas próprias fileiras, como nas diferentes áreas. Agem irmanados pelos interesses da nação, tendo como principal virtude protegê-la e desenvolve-la. São definidos pelo que fazem para além de suas funções profissionais. Ser um “intelectual” significa desempenhar um papel peculiar na vida de uma sociedade como um todo. É esse desempenho que o transforma em um intelectual e não apenas o fato de ser um membro da “classe do saber”, que tenha obtido as credenciais formais do processo de educação ou da condição de membro de um grupo profissional específico (esta ultima é uma condição necessária, mas não suficiente para a incorporação da categoria de “intelectual).
Uma vez cunhado por Clemenceau, o conceito de intelectual funcionou ao longo deste século mais como um postulado, um projeto, um chamado mobilizador, do que como uma definição empírica, “objetiva” de uma categoria particular da população. Embora assumindo uma forma descritiva, seu verdadeiro significado era uma intervenção aberta, que teve de responder com a escolha pessoal do compromisso. Um chamado aos grupos privilegiados da sociedade que deveriam admitir sua responsabilidade global, assumi-la e exercê-la a serviço da sociedade como um todo. Ao mesmo tempo, era um procedimento legitimador, que justificava a intervenção política, uma vez que tinha sido realizado sob a enorme influencia do manifesto de Julien Benda, publicado em 1927. Esta compreensão de uma responsabilidade e uma missão política dos intelectuais se dava no sentido de dominar (mesmo que isso pesasse contra eles) através da autoconsciência dos segmentos letrados da sociedade.Portanto, desde o principio o conceito de “intelectual” foi um conceito militante, mobilizador, com sua linha de ação voltada contra tendências antagônicas. A crescente fragmentação da classe do saber, proporcionada pela expansão de áreas de conhecimento e a consequente diminuição de importância das profissões eruditas (e de “público”em geral) numa época em que a política tornava-se uma ocupação a parte de tempo integral. Portanto, apesar de aparentemente preocupado com o futuro, o conceito guarda um sabor nostálgico. Era um chamado a reafirmar e a restaurar a unidade e a elevada autoridade pública dos homens dos saber, uma vez que gozavam(e, supostamente, é verdade), de um suposto privilégio, mas que agora estava sendo corroída ao ponto de ser perdida.
ZIGMUND, Bauman. “Los intelectuales em el mundo pos moderno”, In: Revista Critérios (34), La Habana: Casa de las Américas, 2003.
sábado, 19 de junho de 2010
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